96 - TJRJ. Apelação. Representação do ECA. Vídeo em plataforma digital. Crianças repetindo frases de conteúdo impróprio. Violação à proteção integral. Retirada do conteúdo. Monitoramento por hash. Elemento identificador. Ausência de violação ao Marco Civil da Internet.
O ECA é o diploma legal regulamentador da norma constitucional que prevê a proteção integral das crianças e adolescentes recaindo tal obrigação à família, ao Estado e à sociedade, nos termos da CF/88, art. 227, caput. Logo, o princípio da proteção integral exige que tanto a família, quanto a sociedade e o Estado, zelem pelos direitos e cuidados inerentes à formação de crianças e adolescentes, nesses compreendidos quaisquer menores de 18 anos, que estejam ou não em situação de risco pessoal ou social. No caso em tela, a representação apresentada pelo Ministério Público se dirige contra vídeo divulgado nas plataformas digitais mantidas pelas empresas rés em que crianças aparecem repetindo falas do ex-presidente Jair Bolsonaro. No vídeo, as crianças acabam por repetir diversas mensagens de conteúdo impróprio para sua idade, por conterem palavras inapropriadas, misóginas, de incitação à prática de crimes e violência, de apologia ao uso de armas e com diversas formas de preconceito e ódio. A liberdade de expressão não constitui um direito absoluto, havendo, em diversos pontos de nosso ordenamento jurídico, limitações ao exercício abusivo, ilegal e inconstitucional desse direito e, por isso, tal liberdade não pode servir de pretexto para que crianças sejam expostas a mensagens completamente inadequadas para sua tenra idade. Nesse sentido, o conteúdo do vídeo acaba violando tanto os direitos das crianças que são filmadas como de todas aquelas que foram expostas ao conteúdo, por não haver qualquer tipo de advertência quanto a ser um conteúdo inapropriado para crianças, infringindo assim as regras dos art. 70 e 78 do ECA. Consequentemente, correta a sentença ao reconhecer que o conteúdo do vídeo desrespeita as normas do ECA e determinar sua retirada das redes sociais. No que se refere à obrigação de monitoramento das redes sociais com a retirada de cada nova postagem do vídeo, mantendo a hash do arquivo em black list, entendo não haver qualquer desrespeito às diretrizes do Marco Civil da Internet. Não se desconhece que Supremo Tribunal Federal ainda está discutindo o tema 987, referente à constitucionalidade da Lei 12.965/2014, art. 19, sendo que o referido artigo exige que as ordens judiciais de retirada de publicações digitais devem identificar de forma clara e específica qual conteúdo gerado por terceiros seja objeto da determinação. O Relator, Ministro Dias Toffoli considera a Lei 12.965/2014, art. 19, inconstitucional, e defende a desnecessidade de ordem judicial para que os provedores de Internet removam conteúdo ilegal das redes sociais, sendo que o julgamento ainda não foi encerrado. No entanto, o julgamento ainda não foi encerrado, e o referido art. 19, permanece em vigor. Por sua vez, o hash de arquivo é um número identificador baseado em seu conteúdo binário, de forma que cada arquivo possui um hash específico e distinto dos demais. Funciona como uma impressão digital do conteúdo. Independente de quantas vezes um arquivo tenha sido compartilhado ou repassado, em qual plataforma tenha sido hospedado ou de quantas vezes tenha sido assistido ou visualizado, o hash se mantém, igual, para aquele conteúdo e para todas as cópias dele. Se dois arquivos são iguais, seus hashes são iguais. Conclui-se, portanto, que, ao determinar o monitoramento com base no hash do vídeo objeto desta ação, a ordem judicial especifica qual o conteúdo deverá ser objeto de monitoramento para que se impeça nova postagem, sendo certo que as URLs não são o único meio de identificação. A inconstitucionalidade afastou a imunidade às redes sociais. Portanto, não há qualquer violação a este anseio em se determinar o monitoramento de um conteúdo que já foi declarado como violador dos direitos previstos no ECA. Neste sentido, a responsabilização das plataformas por conteúdos de terceiros deverá se basear no art. 21 do Marco Civil, que prevê a retirada do conteúdo após simples notificação. Não há qualquer óbice ao monitoramento prévio desde que possa ser plenamente identificado qual o conteúdo que não poderá ser postado novamente. Interpretar de forma diversa conduziria à completa falta de efetividade de qualquer ordem judicial de retirada de conteúdo ilegal da internet, pois bastaria o responsável por sua publicação carregar novamente o arquivo para poder mantê-lo na rede, o que certamente não é o espírito da lei. Também não há qualquer inviabilidade técnica para o cumprimento desta obrigação, na medida em que as grandes plataformas de conteúdo digital já promovem seu monitoramento para evitar divulgação certos conteúdos, como material com pedofilia e incitação a terrorismo. Na era da inteligência artificial, impossível se argumentar que não há viabilidade de se monitorar conteúdo devidamente identificado. A possibilidade de dois arquivos diferentes terem o mesmo hash, fenômeno conhecido como colisão de hash, é ínfima, tendo probabilidade menor que ganhar na loteria, de forma que não pode servir de escusa para que a ordem judicial não seja efetivada. Dessa forma, correta a sentença ao determinar que as empresas rés promovam o monitoramento de suas plataformas de acordo com o hash do vídeo, a ser incluído em black list, para impedir que seja novamente colocado no ar. Desprovimento do recurso.
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